quinta-feira, 9 de outubro de 2008

os efêmeros

Ando em busca d'Os Efêmeros. Encontro-os por todos os lados. Passantes calmos ou afoitos, vendo-se ou vendo-me. Os efêmeros são os vivos, os que podemos ver, e os fantasmas que vemos mesmo que não existam, e os que existem e não podemos ver. Qual a cegueira que nos toca, que nos impede a mira? O que eu veria se destapasse os olhos? Veria os efêmeros, os que se escondem, atrás de suas próprias nucas, e à sua frente perdidos de si mesmos em busca de si mesmos por meio de outros, e os outros? Outros, os desistentes e os insistentes, os efêmeros com seus sapatos, saias, bolsas, máquinas de fotografar, sombras; lêem livros, fazem teatro, assistem, esperam, comem, andam, olham, chegam, vêem, vão, os efêmeros estão por todos os lados, simples, complexos, apressados, com seus trejeitos, sorrisos, fome, seus objetos de espera, de sedução, repetam a vida, repetam a morte em vida, repetem a vida em vida, a armadura que sustenta toda vertigem. Os efêmeros formam atalhos, desvios, andam, andam, seguem lemingues sempre prontos ao abismo lento ao qual demos o nome de esperança. Os efêmeros são feitos de sinais, filigranas, fascínio, atenção, esperas, pés no chão, amor, prazer, conversas, ordens, são antípodas, são a nossa imitação. Os efêmeros nos perguntam e não respondem, os efêmeros só esperam que os ajudemos a atravessar a grande vertigem. Sempre a espera do grande contentamento invisível. Desnudemos os olhos. Queremos nossos olhos nus para que os efêmeros passem em seu cortejo triunfal em paz. Os efêmeros somos nós.
MÁRCIA TIBURI

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Delicadeza

"1. O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro.
Isto é uma monstruosidade. O tempo é o tecido de nossas vidas. - Antonio Candido

Não, a delicadeza não é inerente ao humano. Por isso precisamos dela. É mais fácil encontrar alguma delicadeza espontânea entre os animais. Os animais não atropelam seu ritmo natural a não ser quando em fuga; não destroem seu ambiente além do necessário para se alimentar; não se exibem e não intimidam seus semelhantes a não ser para se acasalar ou para disputar a fêmea. Dos animais, só não dizemos que são delicados porque estando fora do alcance da linguagem, não conhecem o antagonismo entre o que é delicado e o que não é.

A indelicadeza é própria do humano. O homem criou e expandiu um sem número de artefatos de morte; o homem valoriza e aperfeiçoa infinitos recursos para exibir sua suposta superioridade sobre os semelhantes, ferindo continuamente o frágil equilíbrio entre as representações do eu e do outro. Só o homem é capaz de ferir o silêncio, aniquilar a escuridão, desacreditar do mistério, acelerar o tempo.

Acima de tudo, somos indelicados com o tempo: desde o início da era industrial, o homem vem esgarçando esse frágil e precioso tecido da existência. Por isso, a delicadeza é uma conquista, um valor ético, um parâmetro estético.

2. Depois de te perder, te encontro com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza... Chico Buarque

Com certeza/talvez? A certeza do poeta não é certa. O verso deixa margem à indeterminação. Representar o tempo do reencontro com tempo (utópico?) da delicadeza pressupõe que o desencontro tenha ocorrido em um tempo brutal, com brutal é a paixão humana pela certeza e pela segurança. A delicadeza cura?

Talvez. Mas para isso é necessário tolerar a indeterminação. A brutalidade que fazemos com o tempo, o tecido de nossas vidas, consiste em transformá-lo em matéria rentável. A vida não é um investimento seguro no mercado de futuros. O valor do tempo não se conta em dinheiro. O tempo é parceiro da incerteza e da indeterminação, fora do que a grande rapsódia da vida amesquinha-se.

3. Nunca estamos em nós: estamos sempre além. O temor, o desejo, a esperança, jogam-nos sempre para o futuro, sonegando-os o sentimento e o exame do que é, para distrair-nos com o que será, embora então já não sejamos mais. Montaigne

'Já se foi o tempo em que o tempo não contava', escreveu Paul Valéry. Seremos delicados quando fizermos a passagem do 'tempo é dinheiro/ganhe dinheiro não perdendo tempo' para o 'tempo que não conta' de Valéry. Entre um e outro, a depressão que se expande no mundo industrial contemporâneo insere uma outra forma de temporalidade: o tempo que não passa."
MARIA RITA KEHL - DELICADEZA
CICLO DE CONFERÊNCIAS MUTAÇÕES A CONDIÇÃO HUMANA