quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Delicadeza

"1. O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro.
Isto é uma monstruosidade. O tempo é o tecido de nossas vidas. - Antonio Candido

Não, a delicadeza não é inerente ao humano. Por isso precisamos dela. É mais fácil encontrar alguma delicadeza espontânea entre os animais. Os animais não atropelam seu ritmo natural a não ser quando em fuga; não destroem seu ambiente além do necessário para se alimentar; não se exibem e não intimidam seus semelhantes a não ser para se acasalar ou para disputar a fêmea. Dos animais, só não dizemos que são delicados porque estando fora do alcance da linguagem, não conhecem o antagonismo entre o que é delicado e o que não é.

A indelicadeza é própria do humano. O homem criou e expandiu um sem número de artefatos de morte; o homem valoriza e aperfeiçoa infinitos recursos para exibir sua suposta superioridade sobre os semelhantes, ferindo continuamente o frágil equilíbrio entre as representações do eu e do outro. Só o homem é capaz de ferir o silêncio, aniquilar a escuridão, desacreditar do mistério, acelerar o tempo.

Acima de tudo, somos indelicados com o tempo: desde o início da era industrial, o homem vem esgarçando esse frágil e precioso tecido da existência. Por isso, a delicadeza é uma conquista, um valor ético, um parâmetro estético.

2. Depois de te perder, te encontro com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza... Chico Buarque

Com certeza/talvez? A certeza do poeta não é certa. O verso deixa margem à indeterminação. Representar o tempo do reencontro com tempo (utópico?) da delicadeza pressupõe que o desencontro tenha ocorrido em um tempo brutal, com brutal é a paixão humana pela certeza e pela segurança. A delicadeza cura?

Talvez. Mas para isso é necessário tolerar a indeterminação. A brutalidade que fazemos com o tempo, o tecido de nossas vidas, consiste em transformá-lo em matéria rentável. A vida não é um investimento seguro no mercado de futuros. O valor do tempo não se conta em dinheiro. O tempo é parceiro da incerteza e da indeterminação, fora do que a grande rapsódia da vida amesquinha-se.

3. Nunca estamos em nós: estamos sempre além. O temor, o desejo, a esperança, jogam-nos sempre para o futuro, sonegando-os o sentimento e o exame do que é, para distrair-nos com o que será, embora então já não sejamos mais. Montaigne

'Já se foi o tempo em que o tempo não contava', escreveu Paul Valéry. Seremos delicados quando fizermos a passagem do 'tempo é dinheiro/ganhe dinheiro não perdendo tempo' para o 'tempo que não conta' de Valéry. Entre um e outro, a depressão que se expande no mundo industrial contemporâneo insere uma outra forma de temporalidade: o tempo que não passa."
MARIA RITA KEHL - DELICADEZA
CICLO DE CONFERÊNCIAS MUTAÇÕES A CONDIÇÃO HUMANA

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